Um grupo de mães conversa no portão. Já é a quinta vez durante a quarentena que elas partem de casa rumo à Rua Gastão Gonçalves, número 113. Enquanto aguardam para buscar as cestas básicas oferecidas às famílias dos alunos, elas comentam sobre as sugestões de atividades pedagógicas postadas de segunda a sexta-feira nas redes sociais. “As atividades são mais elaboradas do que as de muitas escolas que dão aulas online diariamente”, constata uma delas. Naquela mesma manhã de 2 de setembro, Joana Cordeiro e a filha Pyetra passariam pelo mesmo portão para receber os mantimentos e deixar na escola algumas das muitas tarefas feitas pela aluna do Pré I. A cada novo trabalho de Pyetra, a mãe a registra em ação, por meio de fotos e vídeos, enviando tudo à Maviane Lima. A coordenadora sorri cada vez que chega uma mensagem. Mas no dia 16 deste mês, ela ficou boquiaberta. Apenas 50 minutos depois da atividade ser publicada, lá estava no celular a imagem de Pyetra, concentrada, reproduzindo o quadro "Os Girassóis", de Vincent Van Gogh.
No dia 13 de março a direção decidiu pelo fechamento da Escola La Salle Rio de Janeiro, para evitar o aumento do número de casos de infecção pelo novo coronavírus na cidade e preservar a saúde de alunos, familiares, professores e funcionários. A medida levou em consideração ainda determinações do Governo do Estado do Rio de Janeiro. No dia 16, uma segunda-feira, salas, refeitório, corredores e parquinho passaram a estar vazios. Mas não demorou muito para que as casas se transformassem na sala de aula. Na quarta-feira, 18 de março, era postada no Facebook e no Instagram institucionais a primeira atividade remota. A solução encontrada pela escola teve o intuito de garantir uma maior acessibilidade dos estudantes, já que muitos lares não dispõem de internet suficiente para o acompanhamento de lives diárias. A família passou a desempenhar, então, um papel ainda mais importante: ser a ponte entre as professoras e as crianças.
Rômulo Koch Rangel Martins se tornou esta ponte para o filho Lucas, do Pré I. “Estou sempre do lado dele e do irmão mais velho, ajudando na atividade. O Lucas pede para fazer, pergunta se hoje tem, se amanhã tem, e adora colocar o nomezinho dele nos trabalhos”, conta o pai que também usa de criatividade para contornar obstáculos: “Às vezes, não temos um material em casa, então tentamos compensar”. Foi exatamente isso que fez Joana Cordeiro para que a filha pudesse dar vida aos seus girassóis, inspirada no pintor holandês. A escola sugeriu como materiais prato de papel, tinta guache, folha A4 e sementes de girassol. O prato deveria ser pintado de amarelo para representar as pétalas da flor e, em seguida, colado na folha A4 branca, onde a criança deveria desenhar um vaso. As sementes no meio do prato dariam o toque final, representando o miolo. O post alertava: “Caso você não tenha em casa tinta guache, semente de girassol ou outro item, não deixe de realizar a atividade. Utilize o material que tiver, como giz de cera, caroço de feijão, papelão, copos descartáveis, formas de docinhos ou o carimbo das mãos com tinta no papel”. Pyetra deu vida à sua arte inspirada em Van Gogh a partir de papelão recortado, pois não tinha o prato de papel.
De maneira geral, no entanto, as atividades são planejadas de forma a aproveitar insumos e utensílios que façam parte da rotina doméstica. Pregadores de roupa foram importantes aliados para que as crianças pudessem quantificar. Copos com suco ou água as auxiliaram no reconhecimento do conceito matemático de cheio e vazio. Brinquedos dentro e fora da caixa também deixaram lições, assim como roupas de cores iguais e diferentes, que deveriam ser separadas pelos pequenos. A bandejinha de isopor, na qual muitas vezes vêm os frios ou outros itens do mercado, junto do palito de dente e de uma caneta foram suficientes para que os alunos pudessem relembrar algumas formas geométricas, aperfeiçoando ainda a coordenação motora fina, o movimento da pinça, a concentração. O uso de materiais recicláveis tem sido outro carro-chefe. Recentemente, a cartela de ovos virou tabuleiro para a confecção do jogo "Resta 1". Já as tampinhas de garrafa Pet serviram como base para a brincadeira "Colmeia das Letras". Até a caixa de pizza foi aproveitada parar gerar a vitória régia. Cuidar da natureza dando novos destinos ao que iria para o lixo caminha junto à percepção de que o ser humano é parte do organismo Terra. Esse entendimento fez os alunos se imaginarem plantando bananeira com o líder indígena Ailton Krenak na floresta. Os fez também trazer a floresta para dentro de casa. Por meio de folhas secas, os pequenos aprenderam o que é o frottage, a reprodução da textura no papel, transformando o fim da vida em início da arte.
Aliar propostas pedagógicas enriquecedoras à realidade de responsáveis sobrecarregados tem sido uma preocupação constante. Afinal, o Regime Especial Domiciliar traz consigo inúmeros desafios, como conciliar uma nova rotina em casa com jornadas exaustivas de trabalho, em muitos casos informais ou autônomos, que consomem todo o dia. Correr atrás da subsistência, ainda mais depois de certo tempo sem poder sair de casa, no lockdown, é igualmente necessário. Márcia Cristina Veríssimo sabe bem o que é isso. “Eu confesso que não é muito fácil para eles obedecerem, entenderem que o dever é sério. Certos dias eles aceitam, certos dias não. Como tenho também outras atividades para fazer, fica difícil”, desabafa a mãe dos gêmeos Nicolas e Murilo, que este ano se despedem da escola. Para identificar os impactos do tempo longe do espaço físico da escola, assim como as habilidades dominadas ou não pelos alunos, a coordenação começou a preparar atividades dirigidas. Após acompanharem a mãe na entrega de mantimentos no dia 2, os gêmeos foram para casa carregando consigo exercícios que permitirão à coordenadora Maviane Lima avaliar se eles identificam letras, números, cores, se conseguem escrever seus próprios nomes, entre outras competências. A avaliação é importante para que sejam elaboradas estratégias a cada criança.
Antes mesmo de receber as respostas, ela tem consciência de que continuar incentivando a parceria entre família e escola é “essencial”. “Muitos pais nos agradecem e ficam felizes com as atividades propostas, porém relatam também que o entusiasmo do início passou e a rotina levou ao desânimo. Ouvi que foi igualmente difícil aos pais, em diversos momentos, apoiarem seus filhos e alguns responsáveis não entendiam a importância das atividades. Desenhar, por exemplo. Pode parecer algo simples, mas através do desenho acompanhamos a linguagem expressiva da criança, percebemos a utilização de conhecimentos construídos no cotidiano, incentivamos a autonomia, o processo criativo. Por meio dos traços no papel, ela nos apresenta suas interpretações de mundo, seus anseios e medos. Seja no caderno, na folha A4 ou na terra do quintal, os desenhos demonstram o desenvolvimento de sua personalidade, nas cores, nas formas, na imaginação que aflora”, constata Maviane, “Após muito diálogo, fomos aos poucos dando a compreender que a ajuda do adulto é essencial neste período, apesar de sabermos todas as dificuldades que os pais enfrentam, pois os pequenos ainda não têm autonomia para lerem as atividades e as desenvolverem sozinhos em casa. Nossos alunos precisam do fortalecimento dos laços familiares para se sentirem seguros a prosseguirem”.
É o que mais querem também as professoras. Incentivadas pela coordenação, elas inovam: gravam vídeos cantando; levam seus alunos em época de festa junina a conhecerem o Nordeste por meio do forró, do cordel; os fazem sair pulando com a dobradura do saci, na celebração do folclore; na chegada da primavera trazem poesia, pintura, arte para fazer germinar. Para esta matéria, perguntamos a uma pedagoga de cada turma qual foi a atividade remota que mais gostou de preparar e qual a relevância dela. Confira as respostas abaixo:
Déborah Elias
Professora da Creche III
“A atividade sobre a literatura de cordel foi uma das minhas favoritas, pois permitiu ao aluno conhecer e explorar a cultura nordestina, ter contato com um novo tipo de gênero textual e ainda trabalhar a identidade, pois o objetivo da atividade era escrever um cordel sobre si mesmo, suas brincadeiras favoritas, família, comida e características pessoais. A ideia era que, conhecendo expressões culturais de outra região, a criança pudesse expandir sua leitura de mundo e assim desenvolver a leitura de si mesmo”.
Ana Paula da Silva
Professora do Pré I
“Por meio de uma atividade remota apresentei para as crianças a poesia "As abelhas", de Vinicius de Moraes. Além de estimular a leitura, a interpretação, o raciocínio lógico, a interação, a criação e a reflexão, pudemos desenvolver e enriquecer o vocabulário dos pequenos. A poesia acalma e ao mesmo tempo nos instiga”.
Daniele Borges de Araujo
Professora do Pré II A
“Lembro com carinho da atividade de estímulo aos traços e às linhas. Podemos encontrar as linhas dando forma a vários objetos e é a partir do tracejado delas que os desenhos vão ganhando seus contornos. Desenhar, por sua vez, possibilita para a criança a ampliação do imaginário infantil, a criatividade, a visão de mundo, da arte, da estética e o desenvolvimento de novas narrativas, expressões e sentimentos. Principalmente neste momento que estamos vivendo, o desenho infantil é uma boa forma de entender e perceber o que as crianças querem expressar. Devemos levar em consideração que elas também estão emocionalmente cansadas e sentindo as dificuldades deste tempo atípico tanto quanto os adultos”.
Gislaine Rodrigues
Professora do Pré II B
“Para trabalhar a temática da primavera, propus aos alunos a releitura da obra "Os Girassóis", de Van Gogh. Essa atividade agregou um leque de possibilidades que podem ser trabalhadas em vários campos de experiência, por isso gostei tanto dela. Apresentar obras de arte na infância proporciona o desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade, do senso crítico. Quando a criança explora os sentidos, ou melhor, quando põe a mão na massa, ela desenvolve a sua coordenação motora fina, pois ao desempenhar ou manusear pequenos objetos, ela realiza movimentos delicados e preciosos que farão toda diferença no seu desenvolvimento, nas habilidades que a acompanharão no dia a dia”.
NA COZINHA COM A TIA FLÁVIA
Por falar em mão na massa, o que não tem faltado são oportunidades para que os alunos da La Salle RJ possam manusear ingredientes, vivendo momentos nutritivos e de dar água na boca. Flávia Carrete é a nutricionista que proporciona essa vivência na escola e agora também em casa. Suas contribuições na pandemia vão desde o jogo da velha das frutas até a construção de uma pirâmide alimentar e, claro, muitas receitas, indo da pastinha de ovo ao bolinho de chuva.
O projeto Salada de Letras segue sendo uma realidade. Por meio do livro de mesmo nome da autora Rosângela de Moro, as crianças conheceram Camila, a menina que só queria saber de doce. Dona Rosa, sua mãe, já estava preocupada, até ter uma ideia: a filha poderia escolher o que comer, desde que seguisse a ordem alfabética. Da literatura para a vida real, Flávia tem a oportunidade de apresentar aos alunos alimentos diversos, de A a Z. Remotamente já foi ensinado por ela e por algumas professoras os seguintes preparos: Cuscuz, Docinho de uva verde, Empadão de espinafre, Feijoada de legumes, Geleia de banana, Hambúrguer caseiro, purê de Inhame, Jujuba caseira, Kafta, docinhos de Leite, caldo de Mandioca, salada de Nabo, Omelete, Pé de moleque, Quibe de forno, salada de Repolhos com cenoura, Sorvete, Tapioca e Uva do amor.
Em cada atividade, Flávia conta com uma ajuda de peso: Diogo, de 13 anos, Gabriela, de 7, e a caçula Alice, de apenas 5 aninhos. Os fiéis escudeiros não largam a mãe por nada e ela ainda conta com o auxílio do marido, Marcio, para as fotos e vídeos (isso quando Diogo não resolve assumir a câmera para fazer os registros). “Eu sempre desenvolvi atividades em família, mas os meus filhos nunca estiveram em contato com a minha profissão como estão agora. Além deles amarem, fazerem questão e não me deixarem mais criar nenhuma atividade sozinha, tem sido importante para eles e também para mim. São momentos que nos aproximam e me aproximam das crianças lassalistas, me remete a elas. É muito ruim desenvolver um trabalho a distância. Quando as crianças estão comigo, consigo sentir um pouco do calorzinho no coração que sinto na escola”, relata Flávia.
Cozinhar a muitas mãos é estreitar os laços que Maviane Lima cita em seu depoimento, que está também por trás das palavras de Flávia e que trazem benefícios para a qualidade alimentar dos pequenos. “Eu prezo muito por isso: a criança inserida no contexto do alimento. Estar em torno da mesa, comendo aquilo que foi feito por todo mundo torna a refeição muito mais prazerosa e não só aproxima a criança da comida como a estimula a experimentar, o que sempre funcionou muito bem lá em casa”, completa a nutricionista.
Partilhar. Cada refeição é uma nova chance de fazê-lo, assim como cada atividade desses seis meses. Sobre elas, Maviane tem ainda um recado a deixar: “O aluno desenvolve a sua personalidade dentro e fora da escola. Cabe a nós, escola e família, juntos, ajudarmos nossas crianças a darem os primeiros passos nesta construção do saber, a entenderem o ambiente em que estão inseridas e as transformações pelas quais passam”.
Por Luiza Gould
Ascom Unilasalle-RJ